De que forma transcender tamanha ferida social marcada por desigualdades ainda tão impactantes em nosso país? Um Brasil dissimulado que ainda assiste descer goela abaixo das instituições pautas que ganham visibilidade somente nos momentos de tragédia, seja em relação à questão racial, social ou de gênero.

O chamado recrutamento às cegas vem conquistando mais espaço, embora ainda lentamente. Assim é nomeado o processo de seleção que omite informações pessoais dos concorrentes, como sexo, raça ou idade. Prefiro entender que é um processo às claras do coração, que dá chance a um ser único, a uma individualidade, que então poderá ser aceito por suas competências e valores sem se arriscar diante dos arraigados e finos véus do preconceito e da ignorância. Tais véus são agentes adversos em nossa cultura, que cobrem a consciência trazendo imenso viés de desigualdade nos processos de seleção e, além disto, contribuição direta para a existência de um abismo social onde os afrodescendentes vivem significativa desigualdade em relação aos brancos.

Da mesma forma, são imensas as necessidades de abertura cultural das organizações para a implementação de políticas mais eficientes quanto à admissão de pessoas com deficiências físicas ou cognitivas e inclusão da diversidade. Em se tratando do preconceito racial ou por deficiência física, ganhei da vida esses dois desafios, por isso posso falar.

Um amigo, de origem judia, certa vez me disse: “Existe o preconceito em relação ao negro e em relação aos judeus. Porém, quando você vê na rua um judeu e um negro andando, você sabe quem é o negro”.  É uma questão de pele. “Na minha pele”, parafraseando o título do livro de Lázaro Ramos. 

Na autobiografia de Nelson Mandela, ele afirma com tamanha força, beleza e bondade que até hoje ressoa em minha alma: “o preconceito é algo que se aprende”. Compartilho dessa mesma opinião, e minha vivência de mais de 50 anos permite colecionar situações pessoais significativas onde também me deparei com meus próprios preconceitos. Sei, portanto, o que é cercear o direito ou qualificar alguém julgando apenas pela “embalagem”.

O recrutamento às cegas é a alternativa que temos e, embora ainda esteja precisando ganhar força nas empresas, representa um avanço. É preciso ter olhos para ver:  é certo que crescemos no convívio com a diversidade e que todo ser humano tem a necessidade de reconhecimento e desenvolvimento. Nesta mesma via, existem padrões na sociedade que precisam ser transformados e deixados no passado. 

Precisamos nos reeducar em relação ao preconceito aprendido e velado, e esse modelo de seleção pode ser visto como uma alavanca para abrir mais espaço à diversidade das minorias, assim como tem sido com o sistema de cotas. Ele se torna cada vez mais eficiente porque enriquece as empresas com a diversidade e com maior possibilidade de times de alto desempenho.

A imagem da empresa também ganha e, certamente, as barreiras internas a serem superadas no dia a dia trarão um ganho de valor inestimável. A inclusão traz a possibilidade dos colaboradores se reconhecerem como seres humanos de uma mesma etnia. Sem ela, há o risco dos próprios gestores de RH oferecerem resistência a este processo, com seus “padrões” sujeitos a preconceitos inconscientes. E sabemos que há muita mediocridade na área de RH. Porém, também chegou até mim uma situação que ocorreu dentro de um dos maiores bancos do país. O gerente de RH simulou um recrutamento às cegas para provar à alta direção a necessidade de olhar para esta questão. Mas outra questão que incorre em possíveis resistências ao avanço dessa prática é quando o “dono da vaga” se opõe. Essa situação pode tornar muito difícil a adaptação do novo colaborador na área e enfraquecer a iniciativa do RH.

A responsabilidade é de todos, e não somente de uma área ou outra. Todo gestor é um gestor de pessoas e, portanto, tem a responsabilidade do cargo de olhar para este tema para além de suas preferências pessoais, e de acompanhar as inovações que estão ocupando cada vez mais espaço no mundo. Para transcender um padrão, somente a força de outro padrão, o da convivência e tolerância à diversidade de todos os tipos. Por isso, todo gestor que promove o diálogo e o encontro humano dentro das organizações estará contribuindo para a diminuição do “viés inconsciente” que prejudica contratações e oportunidades. 

Nós, consultores, estamos sendo contratados para apoiar a condução de tais processos dentro das empresas, para proporcionar que as pessoas compartilhem suas biografias, criando mecanismos e implementando ações num ambiente de confiança e respeito, onde os colaboradores falem sobre como pensam e se sentem, sabendo reconhecer e administrar conflitos. Afinal, conhecer o outro com o qual se convive mais de 8 horas por dia faz de todos nós mais humanos, mais felizes e, por que não, produtivos. Além disso, políticas que estimulem a diminuição do uso de meios eletrônicos e a valorização do diálogo presencial e direto ganham força como estímulo à coexistência da diversidade nos ambientes organizacionais.

Os caminhos são muitos e extensos, e os gestores podem e ‘deveriam’ estimular a conversa a respeito de diversidade no ambiente de trabalho a partir das situações do dia a dia ou de casos que ganham repercussão na mídia. Mas nada substituiu conhecer o outro com o qual se convive diariamente. Pessoas que farão ou fazem a diferença na vida uns dos outros. 

SILVIO IGNACIO

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